Uma Sociedade de Selvagens


"Infelizmente, ao contrário dos liberais modernos, que com o seu optimismo se contentaram a imaginar a base da sociedade como estando na pseudo-racionalidade de cada indivíduo — idealizado como sendo naturalmente racional e bom —, uma crença que, em termos de valores, mais não significou do que um vazio, já os inimigos da sociedade aberta cedo perceberam que o seu sonho do “admirável mundo novo” requeria uma nova e, para eles, não menos admirável interpretação moral do mundo — um interpretação que, pressurosamente, desde a academia até à redação, e dali para a TV, o cinema, e agora a culminar na repartição estatal, todos em uníssono e enjoativo coro, não se cansam de repetir.
Para quem queira olhar, a nova ordem moral aí está em todo o seu esplendor: o materialismo igualitário, em tudo vertido, desde a economia até às mais íntimas componentes dos indivíduos — raça, género, questões sexuais e de costumes — e traduzido em noções de “justiça social” que, precisamente por não representarem de todo a realidade dos valores perfilhados pelas comunidades Ocidentais, força agora à acção política, ao controlo e manipulação dos conteúdos escolares, à infindável propaganda mediática, aos subsídios e às acções de formação e “sensibilização”, tudo para as re-educar — para o nosso bem, claro.
Em poucos anos, numa sociedade crescentemente dividida, atomizada, individualizada e unida apenas no virtual e no ecrã, a nova moral assim triunfa, vendida sempre como “progresso”, ou “avanço civilizacional”, permanentemente propalada pelos jornais e TV, contra a natural sensibilidade da comunidade, mas servindo superiormente os interesses da classe dirigente. Porquê? Porque, lá está, o Estado forte apenas se impõe onde a sociedade fraqueja.
Assim, a nova moral necessariamente vai atacando sempre a família, individualizando cada vez mais, dividindo infinitamente, agora até os próprios indivíduos nas suas partes “indentitárias”, sobre as quais o jugo moral e julgador do colectivo bem mandado se debruça com vigor e sem remorso — tudo dividir para em tudo reinar, tudo julgar para tudo regulamentar.
Os democratas-liberais imaginaram, e alguns imaginam ainda, um mundo sem morais, apenas regido pela razão e o interesse próprio, mas esqueceram-se, porque na hubris de se imaginarem conhecedores da verdade, que sem um código moral de valores não há racionalidade que possa triunfar — esta, vazia de conteúdo, formal, não-substancial, apenas reflecte os princípios, crenças e valores dos homens, e uma sociedade racionalmente ordenada carece da crença comum que esse ordenamento que é proposto é bom para todos — crença a qual é tão mais forte quanto as normas impostas pelo Estado estiverem de acordo com os valores naturalmente partilhados pela comunidade. Foi, aliás, essa partilha comunitária que gerou a fé no liberalismo contemporâneo, isto, infelizmente, sem que este se apercebesse do legado que, primeiro, recebeu, e, depois, com desprezo, tratou de desbaratar.
No final, sobrar-nos-á uma pequena lição. Onde há muito que se sabe que a ideia do “bom selvagem” não passou de um sonho ingénuo e optimista, se retirarmos a uma sociedade o código de valores que lhes permitiu, desde há milénios, distinguir o mau do bom, então, sem qualificativo valorativo, ao bom selvagem apenas sobra uma componente — a do selvagem. E, como vimos, numa sociedade de selvagens quem manda, por definição, é o Estado.
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